A maioria das pessoas toma remédios em excesso
(Publicado na The Economist, em 26 de abril de 2023)
Os sistemas médicos estão configurados para fazer as pessoas tomarem remédios e não o contrário
Como farmacêutica em um grande hospital de Adelaide, Emily Reeve frequentemente via pacientes sobrecarregados com o número de medicamentos que tomavam por dia. “Eles diziam: ‘Tomo tantos remédios que fico chacoalhando quando ando'”, lembra ela. E ela se preocupava com o fato de que alguns dos medicamentos que esses pacientes tomavam pareciam inúteis ou até mesmo prejudiciais.
Os pacientes da Dr. Reeve não são incomuns, pelo menos nos países desenvolvidos. Aproximadamente 15% das pessoas na Inglaterra tomam cinco ou mais medicamentos prescritos todos os dias. O mesmo acontece com 20% dos estadunidenses e canadenses com idades entre 40 e 79 anos. Como os idosos tendem a ficar mais doentes, o número de comprimidos que uma pessoa toma tende a aumentar com o tempo. Dos estadunidenses com 65 anos ou mais, dois terços tomam pelo menos cinco medicamentos por dia. No Canadá, um quarto das pessoas com mais de 65 anos toma dez medicamentos ou mais.
Nem todas essas prescrições são benéficas. Metade dos idosos canadenses toma pelo menos um medicamento que é, de alguma forma, inadequado. Uma análise da prescrição excessiva na Inglaterra em 2021 concluiu que pelo menos 10% das prescrições distribuídas por médicos de família, farmacêuticos e afins provavelmente não deveriam ter sido emitidas. E mesmo os medicamentos prescritos corretamente têm efeitos colaterais. Quanto mais medicamentos uma pessoa toma, mais efeitos ela sofrerá.
A “polifarmácia”, como os médicos se referem a esse fenômeno, impõe um grande obstáculo à saúde. Um estudo recente realizado em um hospital de Liverpool constatou que quase uma em cada cinco internações hospitalares foi causada por reações adversas a medicamentos. O Lown Institute, uma think tank estadunidense, calcula que o excesso de medicações nos Estados Unidos poderá causar mais de 150.000 mortes prematuras e 4,5 milhões de internações hospitalares entre 2020 e 2030.
Tirar as pessoas dos medicamentos é um terreno desconhecido para os sistemas de saúde modernos, que, em sua maioria, são criados para colocar os pacientes neles. Mas isso está começando a mudar. Médicos, farmacêuticos e enfermeiros estão criando “redes de desprescrição” para tentar divulgar a ideia. (Dra. Reeve, atualmente na Universidade Monash, em Melbourne, dirige uma delas na Austrália.) O Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra publicou um plano para reduzir a prescrição excessiva em 2021. A primeira conferência internacional sobre o assunto foi realizada no ano passado, na Dinamarca.
O uso excessivo de comprimidos sobrecarrega os pacientes de várias maneiras. Uma delas é a logística pura e simples. “As pessoas sentem que toda a sua vida gira em torno de seus medicamentos”, diz Michael Steinman, professor de medicina da Universidade da Califórnia, San Francisco. Quanto mais medicamentos alguém toma, maiores são as chances de que alguns deles sejam tomados de forma errada.
Outros problemas são mais diretamente médicos. Alguns pacientes acabam tomando vários medicamentos que afetam a mesma via biológica. Um exemplo são os anticolinérgicos, que suprimem a atividade da acetilcolina, um neurotransmissor. Vários medicamentos, inclusive alguns antialérgicos, anti-incontinência e antidepressivos tricíclicos, funcionam dessa forma. Mas os médicos nem sempre estão atentos a isso, diz a Dra. Reeve.
Os comprimidos não te ajudarão agora
Eles podem causar overdose. Uma dosagem alta de anticolinérgicos pode suprimir a acetilcolina tão fortemente que pode deixar os pacientes estupefatos ou confusos. Muitas vezes, esses efeitos são erroneamente atribuídos à idade avançada ou a doenças. Ao cortar os medicamentos problemáticos, “tivemos incidentes em que conseguimos reverter o diagnóstico [incorreto] de demência”, diz Barbara Farrell, acadêmica e farmacêutica do Bruyere Research Institute, no Canadá.
A superprescrição (ou prescrição excessiva) pode gerar um ciclo de autorreforço, diz o Dr. Steinman. Vários medicamentos comuns bloqueiam a reabsorção de serotonina, outro neurotransmissor. A ingestão excessiva pode causar tremores, insônia e movimentos bruscos dos braços e pernas. Esses sintomas são frequentemente confundidos com a doença de Parkinson. Assim, são adicionados medicamentos para Parkinson, no que é conhecido como “cascata de prescrição”. Esses, por sua vez, podem causar pressão arterial baixa e delírio, que são, obviamente, tratados com mais medicamentos.
Os problemas também se agravam de outras formas. Quanto mais comprimidos alguém toma, mais provável é que alguns deles interajam de formas prejudiciais. Os farmacêuticos têm bancos de dados de referência que verificam se há interações medicamentosas desagradáveis. Mas o conhecimento é limitado porque os ensaios clínicos tendem a testar apenas um medicamento por vez. Os farmacêuticos não conseguem detectar combinações problemáticas quando diferentes prescrições são distribuídas em diferentes farmácias. E qualquer coisa comprada sem receita é “completamente invisível”, diz o Dr. Steinman.
Todos esses efeitos são ainda mais agravados nos idosos, cujos corpos são menos eficientes na metabolização dos medicamentos. As pílulas para dormir, por exemplo, podem deixar uma pessoa jovem um pouco sonolenta na manhã seguinte. Ema uma pessoa idosa, elas podem causar uma “névoa cerebral”, tornando impossível a realização de tarefas cotidianas. É difícil acertar a dose, diz o Dr. Farrell, “porque [pessoas idosas] geralmente são excluídas dos testes clínicos de novos medicamentos”.
O excesso de medicações persiste por vários motivos. Um deles, especialmente nos Estados Unidos, é a publicidade, que exagera em relação aos benefícios dos medicamentos, diz o Dr. Farrell. A falta de registros pessoais de saúde unificados é outro motivo. Um cardiologista pode prescrever medicamentos para um paciente sem saber o que o médico que está tratando seus pulmões pode ter receitado para ele.
Talvez o motivo mais comum seja o fato de os pacientes não serem informados quando devem parar de tomar um medicamento, ou se esquecem. Nos Estados Unidos, um em cada cinco pacientes que recebem gabapentina, um potente analgésico, ainda o está tomando 90 dias depois da cirurgia (o máximo recomendado é de quatro semanas). Muitas vezes, as prescrições são renovadas automaticamente por outros médicos, que as veem nas anotações do paciente e presumem que elas devem ser mantidas.
Muitos médicos presumem que, de qualquer forma, os pacientes não estão particularmente interessados em interromper seus medicamentos. Isso provavelmente está errado: estudos realizados em vários países mostram que oito em cada dez pacientes estão dispostos a abandonar um medicamento se o médico os aconselhar a fazer isso. Mas esses médicos enfrentam seus próprios problemas. Recursos financeiros para estudos de desprescrição são escassos. A indústria farmacêutica, principal patrocinadora dos estudos clínicos, não está interessada, por motivos óbvios.
No entanto, as evidências sobre como proceder estão começando a se desenvolver. No Canadá, foram desenvolvidos folhetos para ajudar os pacientes a se livrarem de uma série de medicamentos comuns. Eles explicam, entre outras coisas, quais alternativas estão disponíveis, como a psicoterapia, em vez de remédios para insônia. Estudos sugerem que eles funcionam.
Nos últimos anos, também foram desenvolvidas ferramentas automatizadas e diretrizes para a retirada de prescrições de alguns medicamentos. A Medsafer, uma dessas ferramentas eletrônicas, elevou de 30% para 55% o número de pacientes hospitalares para os quais os medicamentos foram desprescritos, de acordo com um estudo publicado no início deste ano no JAMA Internal Medicine. O Drug Burden Index, outra ferramenta, registra as doses cumulativas de medicamentos com efeitos anticolinérgicos ou sedativos.
Em outras palavras, um movimento médico está começando. Seu impacto potencial pode ser considerável. Keith Ridge, diretor farmacêutico da Inglaterra, fez uma comparação irônica, mas reveladora em 2021: “Com bem mais de um bilhão de itens prescritos a cada ano”, escreveu ele, “há um enorme prêmio a ser ganho no aprimoramento da saúde de milhões de pessoas – comparável a um novo medicamento ‘blockbuster’ – se conseguirmos fazer isso direito”.
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